APLICATIVO
- Nei Damo
- 20 de dez. de 2020
- 4 min de leitura
Algumas pessoas que conheço — e acredito naquilo que dizem — são espíritas, e destas, umas participam de trabalhos de um Centro Espírita. Sendo assim, eu deveria ficar boquiaberto e com os cabelos em pé, se ainda os tivesse, com as histórias do além que quando em vez eu ouço. Mas não fico, embora sejam verdades que me contam, porque conheço as pessoas que as relatam. A explicação que encontro para esta incongruência é que não tenho fé, e isto me faz ficar indiferente aos casos do além.
O assunto é no mínimo palpitante, pois que envolve vidas de um outro tempo que não este. E diante do tempo, passado ou futuro, os pensamentos balançam e se desarticulam, pois o tempo não é palpável, programável ou medido. Os primeiros contos de ficção científica sobre viagens ao passado surgiram após a teoria da relatividade de Einsten, onde os protagonistas tinham o cuidado de nada mexer no passado, porque isto alteraria o presente.
Sobre este assunto de tempo e fatos estranhos da vida, ultimamente ciência e religião tem se encontrado nas explicações, e caminham juntas sobre o passado, o presente e o futuro, especulando até sobre mundos paralelos, como o fez, brevemente, Stephen Hawking em uma de suas últimas entrevistas.
Com a cabeça dos escritores se enchendo de ideias em contos, hoje se viaja para o passado e o futuro como quem pega um ônibus numa rodoviária, onde além do destino, na passagem consta a data em que se quer aportar, pretérita, presente ou futura.
Pode-se viajar ao passado e encontrar seu pai ainda criança, ou viajar ao futuro e, presenciando o resultado de uma eleição, voltar a um passado que permitiria matar o candidato que ganhou o pleito. Ou ainda, tomar um vinho com Van Gogh e convencê-lo a não cortar a orelha por causa do amor de uma mulher. Mas com isto, se assim acontecesse, o pintor não se internaria na pequena vila de Saint Rémy e, numa certa madrugada, não veria o céu cheio de estrelas e sem a lua, na visão que resultou no magnífico quadro Céu Estrelado.
E ainda, se este vinho tivesse sido tomado com o pintor, esta seria outra história, talvez vagando por aí, num outro mundo paralelo.
Com a velocidade das pesquisas científicas, não duvido que em breve se terá um aplicativo de celular sobre o tema do tempo. O primeiro aplicativo será para o passado, visto o conhecimento já adquirido e as experiências vividas.
Seria mais ou menos assim, supondo que você acabou de baixá-lo no celular. Ao botar o dedo indicativo no ícone do aplicativo, o mesmo registra a sua impressão digital e com uma foto, registra sua íris.
Com estes dois dados, a comunicação será em português e se inicia o download de todas as suas vidas passadas. Também já te catalogando, o aplicativo fica apto a te atender em tudo que a você se relaciona.
A primeira advertência é ler o contrato de acesso.
Como em todos os outros aplicativos, você pula isto e clica em "avançar". Surge então na tela o aviso inscrito na porta do Inferno, conforme Dante Alighieri, em seu Canto III: "Lasciate ogni speranza voi que ch'entrate!", com a correspondente tradução em português, "Deixai qualquer esperança, vós que entrais!". Você estranha um pouco esta advertência, sente um vento gelado correndo pela espinha, mas, curioso, segue em frente, clicando em "avançar".
Inicia-se então avisos como você já está acostumado a escutar, quando liga para grandes empresas.
— Se quiser saber tudo, de maneira onisciente e onipresente, digite 1 e fale com alguém da Santíssima Trindade. Atenderá o porta-voz. (trombetas e música celestial ao fundo). Mesmo não querendo saber tudo, vale a pena digitar o "1", para ver o espetáculo da apresentação e escutar o que diz o porta-voz. Show de bola!
— Se quiser saber sobre o tempo, sem previsão e na certeza, bem como saber dos requisitos para entrar no céu, digite 2 e fale com São Pedro.
— Se quiser saber o destino de políticos corruptos que tiraram dinheiro da educação e saúde, da infraestrutura e da segurança, digite 3 e fale com Satanás.
— Limbo, digite 4.
— Vidas passadas, digite 5.
Como sugestão, não há nenhuma vantagem em saber sobre isto. Como em cada reencarnação se volta ao mundo num estágio melhor, isto significa que todas as suas versões de passagens por este mundão véio, são piores da atual. Também não pense que você pode ser descendente de Ramsés III, Pitágoras ou Júlio César, para, depois de uns tragos, ficar garganteando por aí em botecos e festas. As castas superiores tinham um número mínimo de pessoas, sendo o grosso da população constituída de servos e escravos. Estatisticamente, é daí que você descende.
— Para falar com o seu Anjo da Guarda, digite 6.
Você já tinha a ideia de falar com ele, mas mesmo assim fica enternecido com a lembrança da infância. E clica no 6.
Surge na sua frente um holograma de uma pessoa comum.
Balbuciando e iniciando o diálogo, você diz:
— Não pensei que fosse assim...
— Eu sou a versão 8.0 do aplicativo. Na versão 1.0, eu aparecia com túnica branca, asas e o cabelo encaracolado. Isto assustava as pessoas.
— Bem... prazer em conhecê-lo. Já você me conhece desde que nasci.
— Sim, com menos 25 dias, que seus pais demoraram para lhe batizar.
— Ainda me lembro da oração: ... meu zeloso guardador... me protege, me guarda, amém...
— Me protege, me guarda e me ampara...
— Ampara? Não me lembro disso...
— Ah! Sempre esqueço que Ele cortou isto há pouco tempo, acho que uns mil e duzentos anos. É que o "ampara" era difícil de explicar para as crianças. Significava um amparo na hora da... bem... naquela hora do último susp...
— Sei, sei... Mas voltemos ao presente. A Mega-Sena acumulou para o próximo sábado. Sabe o que vai dar? Pode passar os números?
— Posso, mas tens que anotar, porque parte das conversas são apagadas da memória, de modo que as pessoas não queiram sempre voltar ao passado para modificar o futuro.
— Pode me dar mesmo? Ótimo! Logo que eu conferir o resultado, eu te chamo.
— Não precisa. Neste momento eu estarei ao seu lado, porque irei lhe amparar.
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