REINVENTAR
- Nei Damo
- 13 de dez. de 2020
- 4 min de leitura
NOTA:
Ao pesquisar na internet “Hormônio do bom humor”, o leitor irá se deparar, entre outras tantas citações, com esta: “Tem dias que a felicidade parece transbordar. Tudo está lindo, a noite foi bem dormida e o que não falta é a disposição de curtir o dia”.
O hormônio causador desta sensação se chama serotonina, e serotonina, meu primo Célio tem aos borbotões. Se não fosse um arquiteto bem sucedido, poderia ganhar a vida fazendo stand-up comedy.
Meu irmão, um de seus melhores amigos, conta que numa viagem ao nordeste, um humorista que fazia show num restaurante convidou alguns dos presentes para subir ao palco. Prontamente, o Célio subiu no palco e o público riu mais dele do que do humorista que o chamou.
Além de fazer rir, ele escreve, e é meu parceiro na crônica deste domingo.
Escrito em parceria
Nei Benito Damo – Um engenheiro que pensa que sabe escrever.
Célio Luiz Damo – Um arquiteto que desconfia que escreve.
Confesso que eu entendia o significado de reinventar naquelas frases dos psicólogos e dos horóscopos, “Você precisa se reinventar”, mas o que eu não entendia era como fazer isto.
Pois agora eu só não sei, como estamos, todos nós, nos reinventando por completo, numa feérica metamorfose. E para descrever esta metamorfose, vamos citar como exemplo duas ações corriqueiras: caminhar e cozinhar.
1 - Caminhar.
Sair de casa, coisa que se fazia com o piloto automático antes da pandemia, passou a ser uma operação de guerra, pensada e repensada.
Deixando de lado de como chegar à rua, iremos direto ao ponto: o cruzamento com seus semelhantes. Antes de sair, você deve saber de cor e salteado a direção e a velocidade do vento, a densidade e umidade do ar e o logaritmo de 2.
A céu aberto, observe: sentido do caminhar do seu semelhante, com máscara ou sem máscara, sexo e idade aproximada. Se for um carro se aproximando, repare na janela: aberta, peso 2, semiaberta, peso 1, e zero para fechada.
Citando um exemplo: um ciclista, sem máscara, jovem de uns 25 anos, vem em tua direção, e ele está a um quarteirão, isto é, a 100 metros. Entre vocês existem dois desvios, a 15 e 25 metros distantes de onde você está.
Lembre-se do primeiro ano do segundo grau: um trem A (o ciclista) com velocidade de 15 km/h segue em direção a um trem B (você) com velocidade de 5 km/h. A que distância de você se dará o encontro?
Supondo o ciclista pedalando com a boca aberta, calcule, em cada respiração, a distância máxima que as gotículas de saliva atingirão o chão. Considere para o desvio padrão o valor de 1,25.
Muito bem. Com base no resultado do ponto de encontro, você deve evitar a passagem com seu semelhante entrando no primeiro ou no segundo desvio?
Leve em conta que, saindo no primeiro desvio, você entrará numa área de sombra e perderá 5 minutos de exposição ao sol, o que equivale a 1.500 unidades internacionais de vitamina D. Resolva o problema em 30 segundos.
Viu? Já imaginou como o cérebro ficou reinventado na atuação dos neurônios?
E com uma vantagem: a ativação dos neurônios no cérebro evitará aquela doença do esquecimento, que se chama Mal de... de... daquele alemão. Ou será russo? Não lembro bem...
2 - Cozinhar.
Neste tempo de reclusão forçada, estamos nos reinventando. Nesta nova ação, buscamos os poucos neurônios espertos e ativos que ainda temos, de modo a reavivar nossa habilidade física, criativa e intelectual, o que é melhor do que ficar coçando o saco, resmungar pelos cantos ou falar mal de políticos honestos.
Eu já havia feito alguns ensaios na área culinária, como fritar ovos, refogar repolho e fazer a massa miojo, até com determinada habilidade. Daí pensei em me reinventar na cozinha, indo além dos mistérios do ovo frito.
Numa hora privada, quer dizer, sentado na privada, onde o youtube substituiu o jornal, busquei uma receita: polenta! Tô dentro!
O passo seguinte foi conquistar a cozinha e, qualquer coisa em contrário da mulher, dou-lhe um tapão no ouvido (brincadeira, brincadeira... )! Daqueles de fazer rodopiar. Não, não... Melhor o diálogo, porque eu conheço o direto de esquerda que ela tem. Com três “sim senhora”, consegui entrar na cozinha.
Foi fácil achar a panela de ferro com sua tampa e uma colher de madeira. Leio e releio a receita:
– 2 xicaras de chá com farinha de sêmola de milho (chamavam na época de farinha de polenta); 2 litros de água; 3 colheres de manteiga; ½ xícara de queijo parmesão ralado fino e uma colher pequena de sal.
Primeiro problema. O que é sêmola? Consulto o Google e vejo: sêmola é o resultado da moagem incompleta do milho, já a farinha de milho é a moagem mais fina onde os grãos não podem ter diâmetro maior de 0,2 mm.
Gritei pra mulher! Esta farinha amarela que está no armário é sêmola ou farinha de milho? Educadamente a mulher gritou da sala! Olhe na embalagem véio tongo...
Decorei o modo de fazer e meti a mão no fogão, com o mesmo cuidado que o Neil Armstrong botou o pé na lua: fogo alto, fogo médio, sal, e deito a farinha lentamente, sempre batendo com um batedor de ovos para não embolar. Terminada a fase mais importante, fico mexendo... mexendo... mudando de braço... mexendo... mexendo.. mudando de braço... mais ou menos 20 minutos sem parar. Segundo a receita é preciso uma hora de fogo. Vou em frente, porque eu não me entrego pros castelhanos.
A última etapa é virar aquela massa sobre uma tábua, exigindo mais perícia do que força. Visualizei minha mãe e minha avó, fechei os olhos e zás!
— Meu Deus do céu! Ficou perfeita!
Fiquei por uns dois minutos com um sorriso nos lábios. Já posso me considerar um exímio polenteiro.
Depois desta, fiz muitos outros pratos, alguns comemos juntos eu e a mulher, outros tive de comer sozinho, que ela saltou fora, e outros foram de arremesso direto ao cesto de lixo. Assim, reinventei o ato de cozinhar.
Gente querida, foi muito boa esta fase chef, mas na próxima quarentena quero ser motoboy.
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