UM GRUPO DE WHATSAPP
- Nei Damo
- 6 de dez. de 2020
- 4 min de leitura
No final do ano passado, recebi uma mensagem no WhatsApp:
— O Wally está desaparecido.
Conhecendo meu primo, sorri de pronto. Primeiro, porque se fosse coisa séria ele me telefonaria e, em segundo lugar, a mensagem não viria com o apelido da adolescência. Atualmente, até o meu primo chama o seu irmão de Walter.
Respondi no outro dia:
— Foi fuga ou sequestro?
Demorou a mensagem de volta, e me chegou assim:
— A Tati também.
O Walter e a Tati formam um casal estável e, conforme as duas curtas mensagens, estavam sumidos. Eu não tinha dúvida que era uma brincadeira, mas também poderia ser algum amuo familiar, algo não raro numa família grande.
Não demorou muito e recebi outra mensagem do meu primo:
— Foram vistos atravessando a fronteira no Chuí.
Resolvi provocar:
— Já botaram o teu irmão, o arquiteto, que dizíamos sempre que ele era o Sherlock, a investigar? Se precisarem de ajuda internacional, eu tenho alguns contatos nos Serviços de Inteligência dos Estados Unidos e do México. Assim, o Sherlock poderia contar com o Agente 86 e o Chapolim Colorado.
A resposta veio dali a dois dias:
— Foram vistos em Buenos Aires, num bar que tem como ponto alto jogos de sinuca, na Calle Florida, depois na Avenida Corrientes, em frente ao número 348 e, por último, no Bairro Caminito, o bairro do tango. Vou te incluir no Grupo que está discutindo o assunto.
E entrei no Grupo. Umas quarenta pessoas, a maioria parentes. Umas levavam na brincadeira, outras supunham intrigas sem maiores consequências, e algumas poucas demonstravam uma maior preocupação. Alguém postou até uma foto com uma imagem difusa, onde uma pessoa amarrada pelos punhos parecia ser o Walter.
O intrigante é que não havia postagens nem do Walter e nem da Tati, e eles pertenciam ao grupo.
E agora? Uma brincadeira combinada? Alguma atitude séria, tomada por algum desentendimento? Briga entre casais?
Leiam as duas postagens abaixo e emitam uma opinião.
Postagem 1
— Antônio Cesar Magalhães, de Salvador, fazendo turismo em Buenos Aires, viu o Walter e a Tati bailando um tango, com muita graça e personalidade, no bairro Caminito.
Ao se calar o bandoneon, músicos e plateia os aplaudiram de pé, com gritos de: "Bravo! Bravo!".
Antônio Cesar, ao cumprimentar o par de conterrâneos pela sua performance no salão, viu, através dos olhos do Walter, uma inquietude do passado distante, uma dor escondida no recôndito de sua alma, alguma coisa olfativa, furtiva até, algo cravado profundamente...
Todos sabem em Salvador que Antônio Cesar, o Toninho, leva muito a sério a prática de enxergar a alma através dos olhos. Psiquiatra, prefere espiar pelos olhos dos pacientes e ver logo os outros "eus", de modo a começar logo o tratamento, no lugar de perder tempo perguntando sobre a mãe. Daí a frase, criada por ele, "Os olhos são as janelas da alma".
Cobrei do Toninho provas do fato de ter flagrado o casal no Caminito, mas disse-me ele que na casa de shows onde estavam, fotos e filmagens são proibidas.
Postagem 2
— Ontem, após a Postagem 1, com o indício ocorrido no bairro Caminito em Buenos Aires, meu primo, seu irmão Sherlock e eu, fizemos uma vídeo conferência para um balanço da investigação e análise dos fatos sobre o caso "Por onde anda o Walter?"
Na realidade, como o detetive da família é quem está comandando o rumoroso caso, o que fizemos foi uma entrevista com ele.
Como o vídeo ficou pesado, pedi para a secretária colocar por escrito, e assim vai abaixo.
Primo - Como te defines?
Sherlock - Arquiteto e lôco, detetive e psiquiatra. Necessariamente na ordem que for preciso.
Eu - E tua infância, como foi?
Sherlock - A esta pergunta, vou responder citando parte de uma canção que compus para aqueles dois lá de Pelotas, o Kleiton e o Kledir. "Sempre fui solito aos pés, dispenso acompanhamento; guri criado no mato, campeão de guerra de bosta, de truco e nado de costa."
Eu - Vamos aos fatos: o que dizes sobre o indício ocorrido no Caminito?
Sherlock - O Toninho acertou no "eu(20-25)” do Walter...
Primo - Toninho? Fala como se conhecesse o psiquiatra baiano... e o "eu(20-25)"... O que é isto?
Sherlock - Claro que conheço o Toninho. Foi meu estagiário e o "eu(20-25)" significa que ele viu, por "drento" dos olhos do Walter quando ele tinha entre 20 e 25 anos. No nosso interior da alma profunda, temos vários "eus", conforme as fases da vida, quanto à sua intensidade. A ligação do "eu atual" com os outros "eus" acontece basicamente de quatro formas, através de chaves acionadas pelo cérebro. A primeira chave é a chave dita "simples", que liga os "eus" todos com 99,68% do que chamamos "Lembrança"...
Primo - Me desculpe pela interrupção, mas Freud citava dois "eus". O "ego", e o "id"...
Sherlock - Bobagem. Eu estou à frente daquele alemão.
Eu - Voltando ao caso...
Sherlock - Então; o Toninho percebeu que o cérebro do Walter usou a chave da forma 4, a mais tenebrosa das chaves...
Primo - Como nosso tempo está se esgotando, o que dizes daquele Indício mostrando que o Walter foi visto no bar da Calle Florida, onde acontecia um torneio de sinuca?
Sherlock - Elementar, meu caro irmão. O Wally, na sinuca, só perdia pra mim e pro irmão 4, empatava contigo, e de quando em vez ganhava do Conde Gatão e de um outro primo. Certamente ele estava procurando uns argentinos fracotes para ganhar. Simples.
Eu - Voltando ao Indício do Caminito, eu gostei daquela frase "Os olhos são as janelas da...
Sherlock - Frase que não é dele! É minha!
Lembro muito bem quando eu disse a frase para o Toninho: estávamos num caso que envolvia muito conhecimento sobre a psicologia humana. No caminho para entrevistar um doido, eu disse a ele: Toninho: preste atenção, que isto é importante, e falei alto: OS ZÓIO SÃO AS JANELAS DA ALMA!!!
Ele botou um sinônimo e a frase ficou parecendo ser dele.
Primo - Para finalizar, não conheço na literatura esses "eus" todos... Isto não existe...
Sherlock - Não existe, mas vai passar a existir. No próximo congresso de Psiquiatria, na Alemanha, lançarei meu livro sobre o assunto e farei uma palestra. O mundo da psiquiatria vai virar de cabeça para baixo.
Eu - Mas, nesta palestra, você não vai ter problema com a língua?
Sherlock - Pouca coisa. Vai ser assim como um nordestino falando pros gaúchos...
Primo - Não entendi...
Sherlock - É que o Congresso vai ser em Munich e eu falo alemão com o sotaque de Viena.
Eu - Muito obrigado pela reveladora entrevista.
Sherlock - Es zwingt. Ich bin immer verfugbar freunde zu wie in buro. Bis bald!
Mas, voltando ao caso: Onde diabos está o Wally?
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