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BONS TEMPOS

  • Foto do escritor: Nei Damo
    Nei Damo
  • 30 de ago. de 2020
  • 3 min de leitura

O ano era 1989. Disputavam a eleição presidencial Lula e Caiado, entre mais de uma dezena de outros candidatos.

Nós morávamos num condomínio onde os edifícios tinham a forma de cruz, como o sinal de mais e, em consequência deste formato, os vizinhos de andar tinham a visão das sacadas uns dos outros.

Em 1989 nós éramos Lula, com adesivos na vidraça da sacada e, os vizinhos do mesmo andar, três ou quatro rapazes do Mato Grosso, estudantes da UFSC, eram a favor do conterrâneo Caiado, também com adesivos na vidraça da sacada.

Num belo dia, num final de tarde, do apartamento vizinho, nos chegou aos ouvidos um grito prolongado, como o grito de um torcedor de futebol: CAIAADÔÔ. Uns dez minutos depois, eu respondi: LUULÁÁ. Depois de uma semana de um grito aqui e outro acolá por dia, minha filha de 7 anos, pegando o espírito da coisa, gritou LUULÁÁ. Não demorou muito e veio a resposta: CAIAADÔÔ. Aquilo virou diversão.

Meu amigo Claudio, que sofrera um AVC, com sequelas de lhe imobilizara o lado esquerdo do corpo, mas que não lhe tirou a vontade ferrenha de tudo, resolveu me visitar, com a obsessão de tomar banho na Lagoa da Conceição, viajando para isto, sozinho, por mais de 400 quilômetros. Meu amigo viajava sem medo.

Esteve na Europa duas vezes, escreveu livros e participava de um programa de rádio em sua cidade natal. Foi vivendo com garra até o fim.

Ele chegou ao meu endereço um pouco antes de eu chegar e, ninguém atendendo a porta, pediu ajuda no apartamento vizinho. Os estudantes do Mato Grosso o receberam bem, o levaram ao banheiro, conversaram e foram mesmo muito gentis. Quando notaram a minha chegada, me entregaram o meu amigo, entre explicações e sorrisos. Sorrisos francos. Sorrisos sinceros. Sorrisos cúmplices.

A visita do Claudio de dois ou três dias, estabeleceu uma trégua de mais de uma semana na disputa presidencial, que depois retornou.

CAAIADÔÔ!

LUULÁÁ!

Nos encontros casuais no elevador, sorríamos sem nos falar, mas eram de ambas as partes, sorrisos quase descambando para a risada.

Eu e um outro amigo, o Otávio, ambos catarinenses e ambos torcedores do Internacional, começamos juntos na construção da Free Way Porto Alegre – Osório, eu como engenheiro e ele como apontador. Nos separamos no final da obra e voltamos a trabalhar juntos 25 anos depois, ele já como gerente de obras. Eu abandonei parcialmente a torcida pelo Inter e ele continuou fanático. Ainda vai a todos os jogos com a bandeira do clube e sempre o acompanha a sua filha, que é a condutora do veículo na volta, caso o glorioso Inter tenha perdido o jogo.

Perdendo o jogo, o Otávio queima a bandeira nas arquibancadas, sai do estádio esbravejando, entra no carro, bate no painel, sapateia o chão, e começa a desancar todos os envolvidos no jogo. Primeiro, o juiz e os bandeirinhas, depois o goleiro, os zagueiros, os meias, os atacantes, o técnico, a diretoria do clube e, por último, o roupeiro.

Até chegar em casa relembra todas as jogadas que deram errado e amaldiçoa a tudo e a todos. Entra em casa amuado, não fala com mais ninguém e vai dormir de mau humor.

Na manhã seguinte acorda melhor, dois dias depois compra outra bandeira e segue confiante e alegre para o próximo jogo. Vai junto a filha, sabe como é...

O Otávio é um líder, daquele tipo simpático, mas brabo. Muito brabo. Um amigo em comum diz que o Otávio, ao levantar, fica uns dez minutos em frente ao espelho, vendo qual o rosnado mais feroz, porque ao chegar na obra, ele sai mordendo o primeiro que encontrar.

Nestes dias de hoje, com as redes sociais e o politicamente correto exagerado, qualquer um se acha o senhor da razão e julga os outros como se estivesse num tribunal.

Uma conhecida começa o dia postando nas redes sociais as palavras “Canalhas! Canalhas!”, antes mesmo de pensar nos assuntos que irá comentar. Um colega cortou de seu relacionamento na internet todos aqueles que tinham pensamento diferente do dele.

Parece que a tendência é de a sociedade se dividir em tribos, onde os indivíduos só se relacionam com aqueles de mesmo pensamento.

Parece também que todos tem a mesma vontade ferrenha do meu amigo Claudio, não para fazer as coisas boas da vida ou para enfrentar as dificuldades, mas uma vontade ferrenha para abespinhar todos ao redor, conhecidos ou desconhecidos.

Parece, mais uma vez, que todos se comportam como o meu amigo Otávio, como se o glorioso Internacional jogasse todos os dias e perdesse todos os dias, como se todos os dias se queimasse a bandeira do time e, todos os dias todos fossem dormir de mau humor.

Estes são os dias que estamos vivendo. Pena.

LUULÁÁ!

CAAIADÔÔ!

Bons tempos, bons tempos...

 
 
 

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