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FICÇÃO E REALIDADE

  • Foto do escritor: Nei Damo
    Nei Damo
  • 1 de nov. de 2020
  • 3 min de leitura

"A Vida como ela é..." é um livro de mais de quinhentas páginas do escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues, onde estão selecionados cem contos, que foram publicados diariamente no Jornal Última Hora do Rio de Janeiro, em meados do século passado.

Nestes contos curtos, Nelson Rodrigues encena, quase sempre em diálogos, sobre ciúme, adultério, obsessão, inveja e outros pecados da alma. A obra de Nelson perdurou durante mais de quarenta anos, transformando-se em peças de teatro, filmes e uma série de televisão. Num dos capítulos desta série, e de memória, uma vizinha atucana a outra dizendo que todo homem trai.

— O meu marido é fiel. Tenho certeza!

— Ah é?! Pois eu aposto que nos jogos de futebol dos domingos que ele diz que vai, ele vai mesmo é para a casa de alguma amante!

E tanto a vizinha incomoda que combinam ir ao estádio. Pelo alto-falante o nome do marido é chamado e se constata que ele realmente não está assistindo ao jogo.

Na saída a vizinha continua atazanando:

— Eu não disse? Eu não disse? Todo homem trai!

As duas não veem um ônibus que se aproxima, e a vizinha é atropelada de morte no asfalto. A outra ajoelha-se ao lado da morta e grita:

— Desgraçada! O que que tu tinha que me falar! Eu era feliz! Eu era feliz! Maldita! E agora, o que que eu faço? Maldita!

O monólogo é uma ficção, pois é claro que ninguém falaria desta maneira diante de sangue correndo no chão, mas é possível que a mulher tenha pensado isto ao ver que o marido não atendeu ao chamado no Maracanã.

A vida é plena de realidades como ciúmes, adultérios, brigas entre irmãos, disputas por herança, sócios que tomam para si a parte do outro, realidades estas que normalmente se revertem em sentimentos de vingança. A belíssima composição "Vingança", de Lupicínio Rodrigues, retrata este sentimento, onde assim ele começa:

— Eu gostei tanto, tanto quando me contaram

Que lhe encontraram chorando e bebendo na mesa de um bar...

E a canção termina com:

— Só vingança, vingança, vingança aos santos clamar

Você há de rolar como as pedras

Que rolam na estrada

Sem ter nunca um cantinho de seu

Prá poder descansar

Ficção e realidade se confundem, uma imitando a outra. O caso a seguir tanto pode ser sido real, como pode ter sido uma ficção:

Rogério e Ana eram casados, tinham um casal de filhos e moravam no quarto andar de um prédio de uma capital. O trabalho de Rogério, uma representação comercial, o obrigava a constantes viagens, na maioria das vezes para as capitais vizinhas.

Com as crianças no colégio pela tarde, Ana notava um rapaz sempre na janela de um edifício perto do seu. Era evidente que o rapaz a cuidava, na esperança de obter alguma correspondência. Ana, mulher apegada ao marido, não correspondia, e simplesmente fechava a sua janela.

Num início de uma tarde, Ana recebe um telefonema dando conta que seu marido estava num hospital, acometido de um derrame cerebral.

Branca de susto e com as pernas tremendo, Ana busca mais informações e acaba descobrindo que o acidente vascular acontecera num motel, e que ele fora levado ao hospital pela companheira de apartamento.

Ana relembra algumas coisas do trabalho de Rogério e nota que ele ia mais para a capital onde ocorrera o fato, inclusive de alguns finais de semana onde ali permanecera e, dizendo ele, ser imprescindível sua permanência para fechar grandes vendas.

O desespero se transforma em raiva, e Ana toma um banho e coloca o perfume preferido de Rogério. Vai até a janela e o rapaz não demora a aparecer. Ana conta os andares, memoriza a janela em relação ao prédio, desce do seu edifício e sobe no edifício do rapaz. Bate na porta, o rapaz abre e ali mesmo na sala, ela se entrega a ele.

Realidade e ficção. Ficção e realidade.

— Toc toc toc...

— S...Sim?

— É neste apartamento que tem uma janela, de onde você vê meu apartamento?

— É... Entre, entre.

— Me mostra a janela?

Ana olha pela janela e vê as janelas do seu apartamento. Vira-se para o rapaz, dá-lhe um leve toque no peito que o faz sentar na cama. Dá um passo para trás, desamarra o nó do seu leve vestido e o mesmo lhe cai aos pés. Ana está nua e perfumada.

— Só vingança, vingança, vingança aos santos clamar

Você há de rolar como as pedras

Que rolam na estrada...

— Era assim que você queria me ver pela janela?

 
 
 

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