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MEUS PRIMOS (2)

  • Foto do escritor: Nei Damo
    Nei Damo
  • 29 de nov. de 2020
  • 7 min de leitura

Daquela pequena cidade dos onze meninos de duas famílias, criados juntos, eu e meu primo mais velho saímos no final da adolescência. Os outros continuaram lá, partindo cada um ao seu tempo, ou optando por ficar, conforme os fatos da vida iam se sucedendo. Os que ficaram, certamente continuaram a viver como nós vivemos, no pequeno universo de cidade, rios e matos, numa naturalidade comandada pelas estações do ano, que naquela vida simples, passavam despercebidas, dia após dia.

Nos matos se ia para arcar timbós, que consistia em escolher a árvore, avaliar, trepar numa altura de uns três ou quatro metros, escolher o galho, agarrar-se, e se lançar para baixo, esperando que o galho arcasse até o chão. Aos matos se ia também após uma chuva com os ventos do inverno, prenúncio de pinhas debulhadas, e voltava-se para casa com os bolsos cheios de pinhões. Nos matos e campos estavam os pés de guavirova, jaboticaba, ariticum, guamirim, ananás, uvaia, araçá, esporão de galo, sete-capotes, cocos e butiás, pitanga e banana-có, cujos grãos tinham que ser engolidos sem mastigar, pois que se mastigados fossem, os grãos se transformavam numa ardida e forte pimenta. Do pula-pula não se comia a polpa, mas o caroço branco que quicava nas superfícies, servia de bala de revólver. Num revólver de madeira, era amarrado no cano uma peça de madeira de uns oito centímetros de comprimento com um furo no mesmo sentido e no meio da peça, com um diâmetro um pouco inferior ao diâmetro do pula-pula. Um pino com cabeça, também de madeira, preso por duas tiras de borracha, era esticado até a cabeça ficar presa numa saliência, debaixo do gatilho de arame do revólver. Com o pula-pula preso com pressão na outra extremidade, ao se puxar o gatilho, o pino preso pelas borrachas esticadas ficava solto, ganhando velocidade no furo da madeira, e impactava fortemente no pula-pula, lançando-a na direção apontada pelo revólver. Um coldre de couro maneiro, uma cinta abaixada num lado na altura do quadril, e lá ia pela avenida o John Wayne para mais um duelo.

Destes regalos que a mata nos oferecia, a mais custosa de se colher era a amora. A amoreira é uma planta rasteira e espinhosa que cresce na vegetação fechada e baixa. O bando de piás se dividia em grupos de dois, e armados de paus, iam abrindo um carreiro vegetação à dentro, na esperança de se deparar com uma amoreira. Se encontrasse, era a sorte da dupla, que se fartava no silêncio e no cheiro do mato, e em silêncio ficavam ao se reencontrar com a turma, pois que ali se poderia voltar nos próximos dias, ou até no outro ano. Bastava marcar bem o carreiro, com uma referência nas árvores mais altas.

Num mato mais ou menos aberto, no tempo das bolinhas de cinamomo quase maduras e, numa pequena elevação, se construía um forte na forma de um quadrado com uns quatro ou cinco metros de lado e de altura uns 80 centímetros, com árvores cortadas a facão. Se dividia a turma em dois grupos iguais, coisa de uns seis a oito cada lado. Se sorteava o grupo da defesa do forte e do ataque ao forte. A batalha se dava com fundas (ou bodoques) e os pelotaços de bolinha de cinamomo doíam e ardiam na pele. O ataque tentava avançar, atirando e abrigando-se atrás de troncos de árvores, e a defesa tentava repelir o ataque, abrigada pelas paredes do forte. Dentro do forte tinha-se que ser rápido: com a funda já esticada, se levantava à procura do inimigo, disparava-se e se abaixava, e trocando de posição, preparava o próximo tiro. Nas paredes do forte também se deixava vazios, de onde se controlava a movimentação do inimigo e era um bom posto para os disparos, e mais protegidos do que quando se levantava, ficando exposto. De toda a turma, só um não aceitava ficar dentro do forte. Sempre no ataque, ele se postava longe, atrás de um grosso tronco de árvore e de lá só saía para tiros à distância. O desgranido era um tipo de Canhão de Navarone.

A batalha só findava quando terminava a munição. Nunca se teve notícia de um olho vazado por uma bolinha de cinamomo, provavelmente devido à ação dos anjos da guarda, que empoleirados nos galhos das árvores acima do forte, desviavam com olhares uma ou outra trajetória mais perigosa. A funda era peça do vestuário e, sempre a de cada um, era com orgulho a melhor forquilha que existia na região. A feitura da funda era no capricho e só se pedia ajuda na hora de amarrar as tiras de borracha na forquilha e no couro, com atilhos também de borracha.

Nos pequenos rios se aprendia a nadar, e ficava-se na espera da grande proeza no lago de uma barragem onde hoje é o bairro Efapi. Depois de se aprender a nadar e a boiar, e pegar uma boa prática, todos tinham que passar pelo maior desafio: atravessar a barragem a nado. Olhava-se aquilo que parecia uma imensidão de água e num belo domingo a coragem vencia o medo. Tomada a decisão, sabia-se que não havia volta, e aquela decisão seria para sempre, um dia marcado na memória.

Na cidade eram as aulas, as brincadeiras de rua, as bolitas de vidro, as festas religiosas, as procissões, as batidas do sino da igreja, os carrinhos de lomba, os três sinais de uma sirene avisando que a sessão de cinema estava prestes a começar, e o futebol de todas as tardes da semana e, foi num futebol de um sábado à tarde que eu tive meu batismo na cachaça.

Estávamos num onze contra onze no campo de futebol onde hoje é o bairro Santa Maria, quando o tempo se armou e não demorou a desandar uma chuva longa e forte. O jogo continuou ferrenho até o final, quando o céu clareou. Tinha-se, na época, a crença de que com o corpo molhado e, para não sobrevir uma gripe, era necessário um gole de uma bebida forte, e fomos em turma para uma bodega, com todas as roupas encharcadas. Sentamos em cadeiras de palha ao redor de mesas de tampo alisado pelas cartas de baralho, e nos trouxeram pão, salame, queijo e cachaça, com o que nos fartamos com alegria. A fome e o frio do corpo molhado atiçavam o alimento e a cachaça. Não sei ou não lembro quem pagou a conta, mas foi a ceia que eu nunca esqueci.

E na cidade também estava o seu Beno, que nos aconselhava de como eram as mulheres, como as tratar e de tudo a mais a esse respeito. Também, de quando em vez e com o dedo em riste, nos fazia uma gravíssima advertência:

— Cuidado aí piazada! Brincadeira de mão; agarramento de cu!!

Sabia muito e sabia tudo, o seu Beno.

Existia uma rádio, com programas de auditório nas manhãs de domingo. Quando começaram os festivais de música no Rio e em São Paulo, Chapecó entrou, sim senhor, no circuito. Uma música de um destes festivais se chamava "Tributo ao Olinto", e foi composta por um dos meus primos. O Olinto era um morador de rua, com problemas de fala, que como o Tuté, teve também os seus dias de glória.

Ainda na cidade, e não sei como, chegou a um da nossa turma a informação que soda cáustica, mais água e alumínio, gerava hidrogênio, um gás mais leve que o ar. A soda cáustica era fácil de comprar, pois era um produto comum na fabricação do sabão, que era feito em casa, e o alumínio se conseguia com as carteiras de cigarro, que eram envoltos, antes do invólucro final, em duas folhas coladas, uma de papel e outra a base de alumínio, que chamávamos de "ourinho de cigarro". Para separá-las bastava deixá-las imersas na água por um tempo.

Fazendo a mistura num garrafão de vidro e mais algumas mangueiras de borracha, se conseguia encher de gás os balões que ganhariam os céus. Se fazia um pequeno cesto com arame fino, onde se prendiam uma bombinha e uma vela. Se amarravam os balões com hidrogênio na bombinha e dois balões sem hidrogênio na estrutura de arame.

O pavio da bombinha era introduzido na vela, e a distância do pavio da vela, até o pavio da bombinha, determinava o tempo de subida do conjunto. A estrutura era envolta com um papel celofane para impedir que o vento apagasse a vela.

Tudo pronto e verificado os detalhes, se acendia a vela e, com muita emoção, se dava a partida das primeiras naves espaciais chapecoenses, com três ou quatro meninos de bicicleta para a operação de resgate, incumbidos que eram de trazer de volta a estrutura com os dois balões, para o próximo lançamento.

Com o tempo, fomos aumentando o tempo de voo, cada vez mais alto, mas num tempo de observar a separação dos balões, quatro continuando a subir, e dois iniciando a queda, levados pelo vento.

No mais longo lançamento, nossa nave espacial voou até a cidade de Xaxim, uns vinte quilômetros longe, onde foi resgatada.

Vejam os leitores as semelhanças com os lançamentos da NASA. Sim senhor, Chapecó deu a sua contribuição para a conquista do espaço.

Já comigo e com meu primo na cidade grande, soubemos depois que na continuação dos lançamentos, e com a preparação do aparato num quarto em cima do Bar Santa Terezinha, alguém acendeu um fósforo... e WRAOUN!! Uma explosão que só não demoliu as paredes, e onde os anjos da guarda atuaram novamente. Quem passou a informação de gerar o gás, não informou que o danado era explosivo.

Era neste ambiente, talvez imutável por muitos anos, que meus primos e meus irmãos nos sucederam, e quem sabe, não tenha sido um deles que tenha riscado na caixa o palito de fósforo.

Numa das férias do segundo grau, ao reencontrar a turma, matar a saudade e saber da explosão, um primo disse, entre risadas:

— Coisa boa piazada! Chapecó ajudou os americanos na corrida espacial, e agora, foi dado o primeiro passo para a criação da Bomba de Hidrogênio!

 
 
 

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